A MEMÓRIA CORPORAL DO
CHUMBo, EDitora ALMA
REVOLUCIONÁRIA,2022.
Rosas, tintas, epiderme, memória.
O convite para ilustrar o livro do Thiago Barbosa chegou quando minha mesa estava coberta de rosas despedaçadas. Há semanas eu experimentava extrair pigmentos naturais de pétalas, primeiro, esfregando diretamente no papel, como um giz de cera, o que deixou minhas mãos tingidas de um vermelho escuro, viscoso, colorindo minhas unhas e abaixo delas. Um sangue floral.
Reuni as sobras das rosas esmagadas num vidro com álcool etílico e fechei com uma tampa hermética. Esperei três semanas e, quando reabri, senti um perfume doce, como vinho ou licor e também, enjoativo, com o de um funeral com muitas flores. A tintura amarronzada que se fez, depois de seca no papel, gerava bordas vermelho carmim como se a cor original tivesse memória sem o corpo de flor.
Identifiquei nos meus movimentos de espremer e arrastar pétalas frágeis, macias e aquosas a mesma brutalidade sofrida pelas personagens do livro. E segui nos mesmos gestos enquanto lia os contos: separei e triturei as folhas secas, guardei os caules e núcleos para carimbar tinta; misturei as folhas novamente com álcool, abri o vidro em sete dias.
O resultado foi um verde neutralizado, muito opaco com um toque amarelado. Ao relacionar este processo com os contos do Thiago, tive um pouco de náuseas e vertigem porque as tonalidades pareciam peles feridas. Surgiu, nos papeis porosos para aquarela, uma paleta de hematomas.
A transformação das rosas, de sua uma estrutura inicial – harmônica e integra – para seus restos em decomposição nos vidros me levou para espaços de morte simbólicas e concretas como necrotérios, prisões, becos escuros. Senti que os corpos sobreviventes na atmosfera dos “chumbos” estavam conectados com o destino que dei a estas flores, interrompidas da beleza, manchadas nas suas biografias. Rosa, como nome próprio, está presente no livro.
Por dois meses, fui combinando o sofrimento desprendido das pinturas com rostos anônimos, silhuetas e paisagens de arquivos públicos de fotos. Com estas imagens, pensei na vida das personagens antes de encarnarem nos contos, quando tinham o direito de viver com corpos inteiros e dignos. Procurei algo que representasse a narrativa de forma contundente como um grito, pesado com um golpe, mas respeitoso com a memória. A estética dos cartazes de designers poloneses e cubanos das décadas de 1970-80, especialmente do cinema/teatro, serviu a este propósito.
Os corpos que sentem profundamente estão vivos na literatura, mas nunca na história estatal, dos “autos”. Acredito que as ilustrações, aliadas a narrativa do Thiago, representam de alguma maneira as emoções invisíveis na memória coletiva. Como observou Eduardo Galeano, é uma reparação histórica narrar do ponto de vista dos que não saíram na foto oficial.
“Los espejos están llenos de gente.
Los invisibles nos ven.
Los olvidados nos recuerdan.
Cuando nos vemos, lo vemos.
Cuando nos vamos, ¿Se van?”*
*GALEANO, Eduardo. Palabras para olvidar el olvido y otros textos. Artículos publicados en Le Monde Diplomatique. Editorial Aún creemos en los sueños, Santiago, Chile, 2012.